ENSAIO II: SOZINHO?
Embora o seu digital acusasse a aproximação da nona hora da manhã e o seu estômago já reivindicasse, grunhindo e se contraindo, o desjejum, ainda era noite. Um extenso e perfurado véu negro ainda se espraiava sob aquele céu austral. Lembrava com estranheza de que, há alguns dias, ouvira um louco e seus séquitos gritarem coisas sobre “noite eterna” e “fim dos dias” em meio a uma pavorosa folie en famille glossolálica. Persignou-se ao se lembrar disso, apesar de nunca ter acreditado naquela coisa toda de céu, inferno e nós na fronteira entre eles. Sua única companhia – assim ela achava – era uma coriza insistente que vez ou outra deixava vestígios de um perfume adocicado salpicarem-lhe o nariz, o que a assustava bastante, haja vista a rodovia deserta que seguia há mais de vinte e tantas horas.
ENSAIO I: SOZINHO NÃO É UMA OPÇÃO
Cravou os dentes sobre o próprio braço ao saber que o motivo que levou sua casa à ruína sempre estivera dentro do seu próprio corpo. O ódio e o desespero expulsavam-lhe o sangue enquanto convidavam os dentes a entrar em sua carne. Só percebeu a ausência da dor ao sentir seus caninos encontrarem a superfície esmaltada do seu próprio osso. Arrancou selvagemente o seu pedaço destroçado e o cuspiu sobre a bandeja de prata à sua frente. Ainda com a dor fantasma e uma leve tontura, enfaixou o braço e perscrutou a massa ensanguentada à sua frente. Não fossem as luzes azuis-cobalto tremeluzindo numa inquietante frequência lógica, aquele seria apenas o horrendo resultado dos desvarios de uma louca. “Distopia”, pensou. E despediu-se, deixando o fio do seu machado beijar a face iluminada da amostra luminosa de si.