PRO INFERNO COM O TERCEIRO ATO
Acordou sem saber onde estava
Na verdade, será que dormia?
Como sonhos são para poucos
Pesadelo era o seu dia-a-dia
Deveria ser como os outros
No vil proscênio da vida
Que crime ser ela mesma
Uma violência contra a maioria
Existir não lhe bastava
Ela queria mesmo era ser
E se equalizar com a maioria
Lhe doía mais que não viver
Sua identidade definharia
Se não a pudesse transparecer
Ser apenas mais do mesmo
Era respirar um eterno morrer
Não me encontre
Quando eu quiser naufragar
Não me corrija
Quando eu errar por querer
Não rascunhe
O que eu devo usar
Não rasure
O meu mode de ser
Não simplifique
Meu complicado pensar
Não padronize
O meu ganhar ou perder
Desista
De me arquitetar
Pois sou caos
Ordem, ato e poder
Lembrou que estava em casa
Sob o teto que a entendia
Aquelas estranhas paredes
Suas verdadeiras amigas
Mas era hora de cair na rede
Um sorriso enlevado abria
Começaria o seu não ser
A personagem que o mundo via
Estranho, sair e se encarcerar
Um escafandro pelas ruas
Mas o aço que interpretava
Não calava sua vontade nua
Se não era, se insinuava
O desejo de ser era ranhura
Onde fugia do papel no qual
Era de todos, não era sua
Não me encontre
Quando eu quiser naufragar
Não me corrija
Quando eu errar por querer
Não rascunhe
O que eu devo usar
Não rasure
O meu mode de ser
Não simplifique
Meu complicado pensar
Não padronize
O meu ganhar ou perder
Desista
De me arquitetar
Pois sou caos
Ordem, ato e poder
NO VAU DO RIO EU
Ser diferente nunca esteve tão em voga como ultimamente, e em todos os sentidos, seja na forma de se vestir, na sexualidade, na forma de pensar (ou moldar o pensamento), no vocabulário, no comportamento ou na estética. Há uma crescente necessidade de cindir do convencional e do padrão vigente. É uma era de descoberta da autenticidade, poder-se-ia dizer. Mas não estaria este fenômeno de busca pelo contraste culminando no surgimento de iguais, só que diferentes (é, eu sei que fica estranho)? Um efeito ampulheta, por assim dizer? E onde vai parar a identidade neste processo?
É claro que a ideia de se destacar da maioria é encantadora. Quem é que não quer ser notado? E quem quer ser confundido? O problema está no mimetismo através do qual costuma-se pensar estar alcançando a autenticidade, algo como: “Pô! Aquele cara tem estilo autêntico pra caralho! Onde será que ele consegue essas roupas? Onde corta o cabelo? Quais os livros que deve ler? E será que lê? Que músicas deve curtir?” Daí o sujeito vai lá e se fantasia com a autenticidade do outro, sai do mainstream e salta de ponta na aspereza (agora pomposa) do underground. E viva la vida! Da noite para o dia aprende-se a gostar de literatura de esquerda, contra-cultura, música da vibe, defender (com aspas, por favor!) as minorias, drogar-se (não critico o hábito, mas critico ferrenhamente o uso indiscriminado por mera recreação, afinal, como já disse Huxley, o mundo exige de muitos um paraíso artificial), frequentar lugares com mais pessoas “autênticas” etc. Cria-se um check-list para ingresso à “autenticidade”. É claro que estas mudanças variam.
Voltando ao efeito ampulheta, percebe-se, nesse movimento, que emerge uma nova massa de iguais (mainstream underground?), de identidades fragmentadas e dependentes, espelhos e tão somente. Até mesmo o mercado já percebeu esta tendência, tanto que há cool hunters em todo o mundo, escrutando o que o jovem “diferente” quer vestir, usar, ler e ouvir. O que começa como uma sede de mudança termina em uma intrincada e homeostática rede lutando – inconscientemente – para tomar o lugar do convencional e, no processo, se tornar um outro convencional.
A verdade é que devemos nos livrar dos padrões (o marginal ou convencional), quebrar paradigmas e nos alforriar de tendências estéreis e ideologias espúrias. Deixarmos de desejar ser e tão somente sermos, sem as lúgubres algemas moralistas e as eufóricas mordaças pseudo-marginais. O ponto é este: SER. Sem ligar para o olhar do sentinela que é o outro e sem olhar o outro com juízo de valor e preconceitos: eis a gênese da liberdade. Todos somos autênticos, únicos – um universo próprio – mas ainda estamos sob a cortina rota do sistema ou sob a máscara púrpura do construto rebelde. E rebelar é preciso, revolucionar é preciso, claro! Mas isso exige uma verdadeira atuação, fora das cortinas e longe das máscaras. Podemos fazer o maior espetáculo da terra, sem representações, personificando o mais difícil papel de todos os tempos, o de nós mesmos. Ser diferente é isso: apenas ser.