Olha, juro que tentei escrever sobre este filme sem dar spoilers, mas ora ou outra lembrava de um traço de A Pele que Habito que, inevitavelmente, merecia comentário. Sendo assim, corro o risco de passar alguma raiva em quem não gosta de saber da trama sem ter visto o filme. Me perdoem os que estão perdendo tempo e ainda não assistiram (não sei como, afinal o filme é até antigo) e os melindrosos que odeiam um despercebido resenhista (ou bocudo chato?).

O filme de 2011 – um amálgama de suspense psicológico e drama experimental -, La piel que habito, é adaptação do romance Tarântula (Mygale), do escritor francês Thierry Jonquet e narra a bizarra e criativa vingança arquitetada pelo proeminente e esquisito cirurgião plástico Roberto Ledgard (Antonio Banderas) contra Vicente (Jan Cornet), o “estuprador” de sua filha, a qual, após o episódio, desenvolveu uma patológica ojeriza ao pai. Apesar da crítica mainstream estar colocando em xeque os últimos trabalhos do diretor espanhol , este é um excelente trabalho do talentoso autodidata Pedro Almodóvar. Um filme ímpar! Com um roteiro original e surpreendente, uma fotografia angustiante e apaixonante e a interpretação mais que verossímil de Antonio Banderas e Elena Anaya, o nosso São Pedro conseguiu mais orgulho para seus milagres na sétima arte.

Pedro Almodóvar
Pedro Almodóvar por Nico Bustos

A PELE QUE HABITO IMPRESSIONA O ESPECTADOR

Almodóvar, como excelente contador de histórias que é, nos deixa perplexos com o desenrolar da trama e com a principal revelação do filme. Roberto, talvez impulsionado (ou enlouquecido) pelos fantasmas das tragédias familiares que precederam e sucederam o estupro da filha, busca muito mais que vingança: Vicente passa a ser, para ele, não apenas o algoz de sua filha, mas um avatar para suas projeções afetivas, um receptáculo para uma mistura de frustração e desejo. Usando uma dinâmica que oscila entre flashbacks e o presente, a película faz evanescer o plano de fundo (a criação de um novo tipo de pele, mais resistente ao fogo e a intempéries, motivada pela “morte” da esposa do cirurgião em um acidente de carro) e vai esboçando o verdadeiro enredo, nos chocando e nos fazendo questionar nossas próprias convicções morais e a reposicionar vilões e mocinhos.

Com closes vertiginosos na bela estrutura “feita” da personagem Vera (Elena Anaya), Almodóvar nos faz repensar as duas formas de beleza, interior e exterior. A iluminação do filme é predominantemente clara, fornecendo sombras que enaltecem a compleição angelical que Elena pincela com maestria e proporcionam uma dramaticidade volumétrica para cada cena. Sempre com enquadramentos inusitados, nos sentimos imersos na história, presentes em cada um dos momentos de tensão.

Roberto Ledgard e Vera num close sufocante
Roberto Ledgard e Vera num desses closes sufocantes

PERSONAGENS VEROSSÍMEIS

A linda Elena Anaya enche nossos olhos e sentidos ao nos fazer crer que Vera realmente está ali e que realmente se sente dentro de uma pele que não é sua, como borboletas num escafandro bem desenhado. É simplesmente tocante cada olhar, cada gesto, cada palavra. E o velho companheiro de Almodóvar, Banderas, não deixa a desejar! Ar de louco ele já tem, o que veio a calhar neste papel. Jeckyll e Hyde purinho! Atuam com uma harmonia e genialidade tão grandes que o drama que os cerca nos sufoca, nos deprime e encanta.

AINDA QUE NADA NOVO, VALE ASSISTIR?

A Pele que Habito não é um desses filmes que nos mantém incólumes, depois de assisti-los. Há uma relação de troca entre nosso repertório e os conflitos que Almodóvar mostra nesse longa, o que é padrão em sua atuação como Diretor. O filme quase beira o romance, apesar de cunhar-se de suspense e drama. Sem ingenuidade ou censura, o filme é mais que entretenimento original, é um convite ao reflexo e à reflexão. Coisa de gente grande. Vale conferir!

A Pele que Habito (La Piel que Habito)
Espanha
Tempo: 120 minutos
Ano (lançamento): 2011
Diretor: Pedro Almodóvar
Roteirista: Pedro Almodóvar
Baseado em: Tarântula, livro de Thierry Jonquet

 

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