Louis e Lestat se decepcionariam com o que sua raça virou para o entretenimento atual. São tempos de vampirinhos politicamente corretos brilhando sob a luz do sol como lantejoulas em festa brega. De dentuços que são mais “humanos” que a Madre Tereza de Calcutá. É bem provável, então, que poucos conheçam Howard Allen O’Brien, mais conhecida como Anne Rice, e suas bem-sucedidas Crônicas Vampirescas. Crônicas que começam com o famigerado Entrevista com o Vampiro. Trata-se de um livro com uma atmosfera ainda mais sombria do que se poderia esperar de um romance do gênero. Fugindo dos lugares comuns do tema e derramando crise em seus personagens, a autora dá vida a uma verdadeira mitologia. Das ruas escuras, úmidas e putrefatas de uma Nova Orleans engatinhando pelo século XVIII para o mundo dos best sellers.

A ENTREVISTA COM O VAMPIRO

O romance é escrito em forma de uma longa entrevista biográfica de Louis de Pointe du Lac. Narrando sua vida à Daniel, um curioso repórter biógrafo, Louis revela os acontecimentos que sucedem sua transformação em vampiro. Esmiúça sua relação de amor, cumplicidade e ódio com Lestat de Lioncourt, aquele que lhe ofereceu o “dom das trevas”. A trama se desenrola com o crescente fascínio de Louis pelo mundo humano, que já não lhe pertence mais. Sua angústia para entender a origem e extensão dos seus poderes tornam a narrativa fascinante, até para Daniel. A constante busca para encontrar outros de sua espécie reverbera num intrincado desfecho.

LOUIS DE POINT DU LAC

Entrevista com o Vampiro nos apresenta Louis, que é o próprio reflexo da introspecção. Após inúmeras tragédias familiares, Louis passa desejar a morte mais que tudo. Brinda com ela em todas as suas saídas envoltas em um desejado perigo irresponsável. Isso até beber o sangue daquele vampiro centenário que lhe ofereceu a vida eterna. Com todos os véus e fraquezas humanas expurgados como excrementos do seu corpo novo, ele passa a se maravilhar com a riqueza de detalhes imanentes no mundo. Quem leu As Portas da Percepção, de Aldous Huxley, vai notar uma incrível semelhança entre as sinestésicas descrições sensoriais de Louis com os opulentos detalhes da experiência do autor com o peyote (mescalina).

Louis – futuramente lembrado com o epíteto “o mais humano dos vampiros” – vive em constante crise existencial graças à força de sua natureza humana em contraste com a besta bebedora de sangue que há em si. É doce, sensível e virtuoso, mas se mostra feroz e impiedoso numa das passagens mais emblemáticas do livro.

Lestat and Louis por NazNemati
Lestat and Louis por NazNemati

LESTAT DE LIONCOURT

Já Lestat é o típico anti-herói (muitos dirão que é vilão). Efusivo, negligente e atroz na arte de se alimentar e matar. É descrito por Louis com uma beleza estonteante e alcalina. Passa a morar com seu recém-convertido, embora não dê a ele o conhecimento e respostas que ele tanto anseia sobre os dons das trevas e a solidão que eles trazem. Não dá pista alguma de seu passado, apenas repete inúmeras vezes que deu a Louis a escolha que ele nunca teve. Apesar de toda a revolta do narrador-personagem, Lestat não pode, de forma alguma, ser visto de forma unívoca e completa.

CLAUDIA E ARMAND

Outros personagens têm importância determinante no desenrolar da trama, como Claudia, amada e protegida da dupla de vampiros, a eterna criança, e o vampiro Armand, líder e ator do Teatro dos Vampiros (admita, você lembrou de Legião Urbana) em Paris.

Armand e Claudia por Libellula
Armand e Claudia por Libellula

UMA MITOLOGIA FASCINANTE

No universo de Rice, os vampiros são criaturas preternaturais que, após deixarem a mortalidade e todas as vicissitudes de uma vida finita, transcendem não apenas a perecibilidade da carne, mas também as limitações intelectuais e culturais que “cegam” os humanos. Tanto, que a noção de gênero cai por terra. Como o próprio Louis explica a Daniel, o desejo se desperta aquém do sexo, é uma atração pelo intelecto do outro. Isso torna normal, no decorrer da história, paixões avassaladoras (não sexuais, lembre-se) entre dois vampiros do mesmo sexo (o chato Edward nem parece tão gay agora, né?).

E sabe por que o nome Entrevista com o Vampiro não é tão estranho para você, que nunca leu o livro? Porque em 1994 foi lançada uma adaptação cinematográfica que fora bem recepcionada pela mídia graças ao trio de galãs que interpretaram os principais vampiros do enredo: Brad Pitt como Louis, Tom Cruise como Lestat e Antonio Bandeiras como um Armand bemmmmmmmmmmmmmmmmm mais velho do que o original. Dirigido por Neil Jordan, o filme homônimo não jogou tanta merda na obra de arte que o livro é por causa da participação direta de Anne Rice na produção do roteiro. Ainda assim, muita coisa foi alterada para deixar o filme mais “aberto” a todo tipo de público.

Elenco de Entrevista com o Vampiro (filme)
Elenco: Daniel, Lestat, Claudia, Armand e Louis

VALE A LEITURA?

Entrevista com o Vampiro é um marco na literatura fantástica, pois transforma o que seria um bando de sanguessugas desvairados em agentes cônscios, embora problemáticos, que encontram a eternidade, mas vivem no lusco-fusco entre o viver para sempre e o invejar a brevidade. Anne Rice escreve com uma sensibilidade tão premente que, às vezes, parece se tratar de uma grande epopeia poética. Não bastasse o talento da autora em nos manter famintos pela próxima página, a versão brasileira contou com a tradução da não menos talentosa e inigualavelmente brilhante Clarice Lispector, ou seja, é lindo do início ao fim.

A versão brasileira pela Rocco traz uma linda capa, acabamento primoroso e uma diagramação que proporciona fluidez à leitura. Trata-se de um livro para quem não aguenta a tepidez da vampiromania infanto-juvenil que assola a literatura e o cinema e que aprecia um drama psicológico sem a batuta do politicamente correto e sem as frescurites do “educar e entreter”. Para ter sido o primeiro degrau de uma primorosa decalogia e de uma nova leva de crônicas, este livro não pode ser nada menos que excepcional!

Recomendado!

Entrevista com o Vampiro
Páginas: 312
Ano (lançamento): 1976
Autor: Anne Rice
Tradutor: Clarice Lispector
Editora: Rocco

 

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