Desde que deixou de apenas entregar DVDs pelo correio para disponibilizar conteúdo via streamming em 2007, a Netflix não para. Não bastasse ter se tornado um dos maiores impérios digitais do mundo, o serviço atua e dirige a cultura pop. Mais que revolucionar a forma como assistimos à TV, a cria de Reed Hastings e Marc Randolph redefiniu nossos hábitos. Se antes sentávamos à frente da TV para assistir a um filme ou a um episódio de alguma série, hoje aprendemos a maratonar. Assistir a todos os episódios de uma série ou a toda uma sequência de filmes virou programa de fins de semana inteiros. Em contrapartida, casas noturnas, bares, cafés e restaurantes têm registrado quedas acentuadas no número de visitantes há algum tempo. Estaria a vida noturna sentindo a hégira do avesso, onde estaríamos deixando a Medina das ruas e voltando para a Meca do entretenimento audiovisual em casa?

NETFLIX E A ENGENHARIA DA SATISFAÇÃO

Quem nunca ouviu falar que Stranger Things, a atual queridinha do serviço de streamming, fora concebida com a ajuda de um poderoso algorítimo? Os irmãos Duffer que nos perdoem, mas faz bastante sentido, haja vista o sucesso estrondoso que o programa obteve com todos os públicos. Por conta disso, Stranger Things será uma coriza insistente por muito tempo ainda. Quem utiliza o sistema sabe que ele se adapta ao usuário. Aprende a reconhecer seus padrões de zapeamento e busca, seus gostos e, assim, a indicar títulos, organizar conteúdo e, num espectro mais holístico, criá-lo. Trocando em miúdos, ela sabe nos agradar. Proporcionar, de forma personalizada e nas cercanias da própria casa, uma gama de produtos audiovisuais que exijam não mais que uns trocados e um dispositivo conectado à internet conquista gregos e troianos.

O FLERTE ENTRE A VIOLÊNCIA E A VIDA NOTURNA

Ok, nada substitui a interação, o ar diferente, os sons e os sabores que só uma passeada após as 20h pode nos proporcionar. Nem é preciso ser um boêmio autêntico para saber que é sob a ribalta da noite que o interessante se descortina. Sair para uns drinks, para comer com os amigos ou o crush, para dançar ou simplesmente para ver gente melhora o humor de qualquer um que vive a celeridade do dia-a-dia. E como não se apaixonar pela glossolalia da noite lá fora? Contudo, nem tudo são flores. Quem vive no Brasil conhece a violenta selvageria das ruas, especialmente nas altas horas. Pode parecer um exagero falar dessa forma, mas infelizmente é o que mais se aproxima da realidade. Obviamente, a atmosfera de crime e o risco latente são desmotivadores razoáveis na hora de decidir sair ou ficar em casa.

NO FRIGIR DOS OVOS

Esse não é um tratado, apenas um texto dentre outros textos. Mas fica claro que optar pelo programa satisfatório, que é a Netflix, na segurança do lar ao invés de ir àquele rolê maroto não é um cenário tão improvável assim. A vida noturna perde, aos poucos, os atores de seu espetáculo. Já o entretenimento que abafa a centelha gregária de cada um de nós passa a se tornar a nova parede no centro da caverna (de Platão). As sombras (aqui, as luzes) que contam sobre a vida lá fora já nos bastam. Apenas fruir parece se tornar melhor que experienciar. Contudo, a “pobre” Netflix não deve ser demonizada, pois, além de não ser a única válvula de escape dos que não querem se aventurar na noite, é apenas reflexo de uma sociedade assustada e cansada.

O importante é não deixar que isso se transforme numa distopia real. É não alienar-se. É não deixar de maratonar a própria vida também. Interagir é importante, até mesmo para poder trocar aquela ideia sobre sua série favorita. E nada melhor que a noite para fomentar a interação. Não esqueçamos a constatação de Christopher McCandless em Na Natureza Selvagem: “A felicidade só é real quando compartilhada.” E não: a vida noturna pode murchar, mas não morre!