ENSAIO II: SOZINHO?

Embora o seu digital acusasse a aproximação da nona hora da manhã e o seu estômago já reivindicasse, grunhindo e se contraindo, o desjejum, ainda era noite. Um extenso e perfurado véu negro ainda se espraiava sob aquele céu austral. Lembrava com estranheza de que, há alguns dias, ouvira um louco e seus séquitos gritarem coisas sobre “noite eterna” e “fim dos dias” em meio a uma pavorosa folie en famille glossolálica. Persignou-se ao se lembrar disso, apesar de nunca ter acreditado naquela coisa toda de céu, inferno e nós na fronteira entre eles. Sua única companhia – assim ela achava – era uma coriza insistente que vez ou outra deixava vestígios de um perfume adocicado salpicarem-lhe o nariz, o que a assustava bastante, haja vista a rodovia deserta que seguia há mais de vinte e tantas horas.


ENSAIO I: SOZINHO NÃO É UMA OPÇÃO

Cravou os dentes sobre o próprio braço ao saber que o motivo que levou sua casa à ruína sempre estivera dentro do seu próprio corpo. O ódio e o desespero expulsavam-lhe o sangue enquanto convidavam os dentes a entrar em sua carne. Só percebeu a ausência da dor ao sentir seus caninos encontrarem a superfície esmaltada do seu próprio osso. Arrancou selvagemente o seu pedaço destroçado e o cuspiu sobre a bandeja de prata à sua frente. Ainda com a dor fantasma e uma leve tontura, enfaixou o braço e perscrutou a massa ensanguentada à sua frente. Não fossem as luzes azuis-cobalto tremeluzindo numa inquietante frequência lógica, aquele seria apenas o horrendo resultado dos desvarios de uma louca. “Distopia”, pensou. E despediu-se, deixando o fio do seu machado beijar a face iluminada da amostra luminosa de si.


AO DEUS INTERIOR

Revigore-se, alma! As sombras, nas quais se deita, aos poucos se dissipam, enquanto a luz que te deixara - quando dela mais precisava - perde sua última centelha. Este cálice de dor que hoje prova é o gral por meio do qual sua essência se lapida, é o espelho delineador de sua real e significante não-aderência. Absorva, pois, todo este "mal" que te consome! Consuma-o e faça com que as forças que aparentemente lhe causam dor tornem-se suas aliadas, seu arsenal! Incinere-se de si mesma e reconheça o elemento cinza para o qual não tardará a voltar, reconheça a vaga lembrança que te devolve ao Éden, o inegável olvido que lhe apresenta o inferno e o caminho do meio que te remete à verdade! Acorde, intangibilidade do meu eu sólido! Olhe para o mundo em que - inconscientes - todos se perdem e veja que a dor, da qual seu âmago se farta, nada mais é que um simples grão de areia da já pútrida praia da vida! Volte-se ao silêncio, onde todas canções versam a verdade, ao cemitério de razões que ressuscitam toda a real essência! Transcenda, crie, recrie, renasça! Que o mundo à sua volta tente cegar este seu escafandro de carne! Mas que sua luz - invisível aos que superficialmente enxergam - leve-me ao instante do tempo onde todo universo se fará visível ao me contemplar por dentro! E que, ao sonhar, eu perceba que é ali o lugar onde estarei, de fato, verdadeiramente acordado!

Aqui o sorriso se esboça...

 


NO VAU DO RIO EU

Ser diferente nunca esteve tão em voga como ultimamente, e em todos os sentidos, seja na forma de se vestir, na sexualidade, na forma de pensar (ou moldar o pensamento), no vocabulário, no comportamento ou na estética. Há uma crescente necessidade de cindir do convencional e do padrão vigente.  É uma era de descoberta da autenticidade, poder-se-ia dizer. Mas não estaria este fenômeno de busca pelo contraste culminando no surgimento de iguais, só que diferentes (é, eu sei que fica estranho)? Um efeito ampulheta, por assim dizer? E onde vai parar a identidade neste processo?

É claro que a ideia de se destacar da maioria é encantadora. Quem é que não quer ser notado? E quem quer ser confundido? O problema está no mimetismo através do qual costuma-se pensar estar alcançando a autenticidade, algo como:  “Pô! Aquele cara tem estilo autêntico pra caralho! Onde será que ele consegue essas roupas? Onde corta o cabelo? Quais os livros que deve ler? E será que lê? Que músicas deve curtir?” Daí o sujeito vai lá e se fantasia com a autenticidade do outro, sai do mainstream e salta de ponta na aspereza (agora pomposa) do underground. E viva la vida! Da noite para o dia aprende-se a gostar de literatura de esquerda, contra-cultura, música da vibe, defender (com aspas, por favor!) as minorias, drogar-se (não critico o hábito, mas critico ferrenhamente o uso indiscriminado por mera recreação, afinal, como já disse Huxley, o mundo exige de muitos um paraíso artificial), frequentar lugares com mais pessoas “autênticas” etc. Cria-se um check-list para ingresso à “autenticidade”. É claro que estas mudanças variam.

Voltando ao efeito ampulheta, percebe-se, nesse movimento, que emerge uma nova massa de iguais (mainstream underground?), de identidades fragmentadas e dependentes, espelhos e tão somente. Até mesmo o mercado já percebeu esta tendência, tanto que há cool hunters em todo o mundo, escrutando o que o jovem “diferente” quer vestir, usar, ler e ouvir. O que começa como uma sede de mudança termina em uma intrincada e homeostática rede lutando – inconscientemente – para tomar o lugar do convencional e, no processo, se tornar um outro convencional.

A verdade é que devemos nos livrar dos padrões (o marginal ou convencional), quebrar paradigmas e nos alforriar de tendências estéreis e ideologias espúrias. Deixarmos de desejar ser e tão somente sermos, sem as lúgubres algemas moralistas e as eufóricas mordaças pseudo-marginais. O ponto é este: SER. Sem ligar para o olhar do sentinela que é o outro e sem olhar o outro com juízo de valor e preconceitos: eis a gênese da liberdade. Todos somos autênticos, únicos – um universo próprio – mas ainda estamos sob a cortina rota do sistema ou sob a máscara púrpura do construto rebelde. E rebelar é preciso, revolucionar é preciso, claro! Mas isso exige uma verdadeira atuação, fora das cortinas e longe das máscaras. Podemos fazer o maior espetáculo da terra, sem representações, personificando o mais difícil papel de todos os tempos, o de nós mesmos. Ser diferente é isso: apenas ser.


ZUMBILÂNDIA

Não é à toa que nos contentamos facilmente com o que somos e nos acomodamos no quarto escuro e sem janelas da alienação. Não pensar - hoje - é um panegírico manifesto dos que querem se sentir acolhidos pela ébria massa, abraçados e reconhecidos por um sistema que nos desumaniza e nos dá uma falsa noção de liberdade e sucesso: o ter, em detrimento do ser; o ignorar, em detrimento do pensar. É fácil constatar que estamos caminhando para uma era do pensamento morto, basta fazer uma análise nas redes sociais, só para se ter uma ideia: a "desimportância" é pregada e espraiada pela maioria gritante dos usuários, entretenimento vazio, humor fácil e desinteresse generalizado. E não é raro você ver críticas destrutivas em relação aqueles que ainda arriscam pensar e expressar seus pensamentos: desdenham e os ridicularizam com argumentos estéreis e nomes pejorativos. Nunca se viu o termo pseudo-intelectualismo ser tão usado. Ser estúpido, hoje, é cool! Ser ignorante é ser descolado! Ser mal-educado é ter estilo! E ser alienado é um atestado de cidadania.

Pensar é uma doença que está sendo evitada a todo custo. Campanhas invisíveis de supressão ao pensamento são uma pungente realidade. O mais assombro é que queremos isso! E perseguimos aqueles "doentes" despadronizados que colocam em risco a estase social. Conceber o pensamento é como dar à luz uma besta apocalíptica. Quem aí achou que zumbis não existiam está parcialmente equivocado.


GRILHÃO DE OURO

Orgulho egoico (aquele que nos cerra, que nos faz donos e senhores de nós mesmos, em detrimento do outro) é para a guerra! Onde defender seus princípios e não se curvar aos interesses do inimigo é uma questão de honra. Virtuoso, apesar de impassível. No amor, porém, honroso é flexibilizar-se, tornar-se brando o suficiente para que o diálogo (de dialética) traduza bem a vontade dos dois em uma síntese bilateral. É a soma não-zero, como diria a teoria dos jogos. O orgulho (aquele sentimento de prazer em ter cumprido seu papel) virá automaticamente, em última instância, como resultado perene de um esforço que se comuta.


PELO CAMINHO I

Tudo era magia para aqueles olhos incólumes. Nunca conhecera a sensação do chorar e, ao ver a natureza turva através daquelas iridescentes e salgadas torrentes que emanavam de seus olhos, sentiu-se pertencente, participante do mundo sensível, o qual tanto desejara.


RETORNO AO CAOS

Arriscava ser pedante, mas sem chegar perto de não ser sincero, dizendo que, sob a batuta do agora, metamorfoseava-se ao avesso, livrava-se das asas, dava adeus aos seus voos, despedia-se da suposta beleza compartilhada e construía o seu casulo de reentrada, d'onde só sairá após "evoluir" para larva. Amorfo, tão vazio quanto o virgem papel esperando o contato fálico da caneta do artista, punha-se novamente à vontade do acaso, o desenhista universal, o atemporal escultor, quiçá o Demiurgo. Caberia a ele apenas inspirá-lo, para que a obra completa seja um pouco dele amalgamado a muito do mundo.

Aos que não compreendessem esse retorno causal, restava seu aceno diligente e seu último olhar saudoso, marejado de nostalgia.


ESTÁTUA DE SAL

Adoro quando ela me olha de soslaio! Quando me perco naquelas prismáticas esferas castanhas ladeadas de negro, naqueles fugidios olhos que mais parecem um panegírico cunhado por deuses artistas. Seu olhar é um premente sortilégio, uma mágica luz que dissipa o juízo evanescente. O fugaz toque daqueles olhos nos meus são como um cáustico beijo na pálida fronte da companheira solidão, é o vento que sopra toda a cortina rota da misantropia para debaixo do tecido veludo da suma participação.


PONTE PARA O REINO DE AMARITUM

Embora divague e não consiga compreender os seus erros, Grinais sente a pior dor que um amante pode sentir: a culpa da perda. Sabe que, como amante inveterado, romântico nato e sonhador absoluto, privou quem ele tanto quis de todo o universo de amores que irrefutavelmente poderia oferecer. Fingiu-se frio por uma dor que há tempos esse alguém tirara. Quis ser escudo impenetrável, salvando-se de outro amor arrebatador, quando, na verdade, aquele nome peculiar jazia encravado em seu peito, distribuindo toda aquela fluidez virtuosa por cada extensão dos seus vasos sanguíneos. Ainda cego pela conduta demasiada defensiva, não lhe ocorrera que já estava contaminado por aquele demoníaco anjo de voz branda e olhar de fogo. Sua presença já dilacerava seus músculos, percorrendo o seu corpo como o magma nos sulcos da terra que ele lambe com fúria e voluptuosa beleza. Ele era a doença em estágio de cura. E que cura! Impossível não ser invadido por aquela silhueta ninféia de proporções mágicas. Era como abraçar a cintura quase invisível de todo o universo.

E essa substância viva que matava sua solidão, esse ópio que lhe trazia maravilhosas e irreais realidades, essa magia profunda e infindável, numa implosão de assombrosa espontaneidade, se foi para algum lugar melhor que ao seu lado, um lugar desconhecido e vazio, onde a única certeza é aquela que deixa claro que ele, que era templo de tão maravilhosa forma, não mais existia. E tudo se foi, como se nunca tivesse sido. Toda beleza espontânea que nasceu sob o testemunho arbóreo de um mundo recriado evanesceu como as lúgubres brumas que se desintegram numa amedrontadora velocidade ao serem tocadas pela luz dourada dos dias que nascem. Porém, o que nasceu foi uma terrível noite, uma cúpula negra e vazia, sem brilho algum de estrelas ou de luar, um céu refletindo a luz que já não existia. E a cura se foi... o fogo se foi... E a já tão vaga e distante voz de dríade ígnea ainda entoa as canções de dias que devem ser esquecidos, lembrando da dor e da conseqüente necessidade amnésica que embala o agora. É, no entanto, necessário que se compreenda que o vazio é o estágio que antecede a criação, sendo assim, agora ele é gênese.