DESERTO DO REAL

Vã mediocridade é o amargo tempo
Estúpida relevância que damos ao ego
Reduzimo-nos a presos deste espaço
Meros brinquedos deste mundo cego
Eis as três ilusões da mera realidade
A feroz tríade que nos mantém retos
Que nos abstrai da perdida verdade
Que nos conduz ao erro, dito correto

Nos foi dado o dever de não pensar
A senil obrigação de jamais reagir
Para que o eu etéreo sempre durma
E nossos olhos se recusem a se abrir
A ponderabilidade é nossa realidade
Vivemos a mentira de tocar e existir
Somos reflexos de uma era passada
Onde sonhávamos somente ao dormir

A ignorância é, de fato, uma benção
Quando a verdade é a grande omissão
Paraísos da mente, realidade fundada
O egípcio acômodo de livre servidão

Hipocrisia consentida é o que respiramos
E o amor se esvai por nossas mãos
Essa terra em que hoje nós pisamos
É o mar de cinzas da real extinção


VAGABUNDO

Antes que o lamento venha a ter vida
E as dores da vida, um encargo
O sol que brilha e nunca se definha
Ilumina o refugo de um grande enfado
O rio impiedoso de águas cinzentas
Reflete a face da bela tempestade
Que retumba com sua voz turbulenta
A dança das feras, a mera humanidade
Ferocidade não falta nas lâminas guiadas
Que alcançam a mortalidade dos ferozes
Que decidem o destino da vida criada
Que morrem sozinhos, mortes menores
De longe se vê o amor andar sozinho
Armadura errante sem um cavaleiro
Espada cortante de valor diamantino
Um escudo forjado no fogo verdadeiro
Mas a esperança avista todos os mortos
No vale escuro e coberto de sangue
Remodela a vida no corpo inóspito
E permanece viva àquele que a ame

O instinto é a sabedoria primitizada
O amor, o caminho para a sabedoria
Belas palavras e frases montadas
Não expressam o infinito que possui a vida


NEM SEMPRE A MARGEM É SÓLIDA

Inconspícuo, dou-me a mim.
Aqui, do olho do furacão,
O ébrio vórtice da multidão
Conserva-me só. Simples assim!

Plácido, sou eixo da destruição,
Insone estátua carmesim.
Do não, o amante; eco do sim,
A inconsciente desfibrilação,

Qual entusiasta do fim.
Escriba da lauda-destinação,
Potência e ato em rebelião,
Fera muda soprando o clarim.

Move-se furiosa a centrífuga mordaça.
Movimento é vida, ser arrastado é sinal de morte.


UM VELHO E NOVO MUNDO

Minhas mãos ainda se lembram
Da pele arrepiada que suas curvas vestiam,
Do seu cabelo (que elas quase arrancavam)
E dos quadris que elas (afoitas) dirigiam.

Nossos corpos ali ardiam!

Meus olhos revivem sempre
Sua beleza nua, pela meia-luz atenuada,
Seu olhar sacana de quem está amando,
Os dentes cravados no lábio, extasiada.

Ah! Éramos libidinosa balada!

Até seu perfume ainda me visita,
Um fragrante tom de desejo evaporado,
O cheiro do amor em lancinante luxúria
Revelando a conquista do céu infernizado.

Diabólicas rosas foram nosso jardim velado...

A constelação de sons ecoa em mim,
Sua voz fugidia me pedindo para te amar.
O fogo invisível daqueles gritos sem dor
Acendem ainda o pavio do meu fantasiar.

Da terra dos prazeres, éramos o mar.

Minha língua detém o seu sabor,
Daqueles absurdos e ardentes beijos,
Desbravadores do seu norte, seu sul,
Que percorriam seu corpo e a cravavam no meio.

Não partimos, um hiato é que veio.


NO VAU DO RIO EU

Ser diferente nunca esteve tão em voga como ultimamente, e em todos os sentidos, seja na forma de se vestir, na sexualidade, na forma de pensar (ou moldar o pensamento), no vocabulário, no comportamento ou na estética. Há uma crescente necessidade de cindir do convencional e do padrão vigente.  É uma era de descoberta da autenticidade, poder-se-ia dizer. Mas não estaria este fenômeno de busca pelo contraste culminando no surgimento de iguais, só que diferentes (é, eu sei que fica estranho)? Um efeito ampulheta, por assim dizer? E onde vai parar a identidade neste processo?

É claro que a ideia de se destacar da maioria é encantadora. Quem é que não quer ser notado? E quem quer ser confundido? O problema está no mimetismo através do qual costuma-se pensar estar alcançando a autenticidade, algo como:  “Pô! Aquele cara tem estilo autêntico pra caralho! Onde será que ele consegue essas roupas? Onde corta o cabelo? Quais os livros que deve ler? E será que lê? Que músicas deve curtir?” Daí o sujeito vai lá e se fantasia com a autenticidade do outro, sai do mainstream e salta de ponta na aspereza (agora pomposa) do underground. E viva la vida! Da noite para o dia aprende-se a gostar de literatura de esquerda, contra-cultura, música da vibe, defender (com aspas, por favor!) as minorias, drogar-se (não critico o hábito, mas critico ferrenhamente o uso indiscriminado por mera recreação, afinal, como já disse Huxley, o mundo exige de muitos um paraíso artificial), frequentar lugares com mais pessoas “autênticas” etc. Cria-se um check-list para ingresso à “autenticidade”. É claro que estas mudanças variam.

Voltando ao efeito ampulheta, percebe-se, nesse movimento, que emerge uma nova massa de iguais (mainstream underground?), de identidades fragmentadas e dependentes, espelhos e tão somente. Até mesmo o mercado já percebeu esta tendência, tanto que há cool hunters em todo o mundo, escrutando o que o jovem “diferente” quer vestir, usar, ler e ouvir. O que começa como uma sede de mudança termina em uma intrincada e homeostática rede lutando – inconscientemente – para tomar o lugar do convencional e, no processo, se tornar um outro convencional.

A verdade é que devemos nos livrar dos padrões (o marginal ou convencional), quebrar paradigmas e nos alforriar de tendências estéreis e ideologias espúrias. Deixarmos de desejar ser e tão somente sermos, sem as lúgubres algemas moralistas e as eufóricas mordaças pseudo-marginais. O ponto é este: SER. Sem ligar para o olhar do sentinela que é o outro e sem olhar o outro com juízo de valor e preconceitos: eis a gênese da liberdade. Todos somos autênticos, únicos – um universo próprio – mas ainda estamos sob a cortina rota do sistema ou sob a máscara púrpura do construto rebelde. E rebelar é preciso, revolucionar é preciso, claro! Mas isso exige uma verdadeira atuação, fora das cortinas e longe das máscaras. Podemos fazer o maior espetáculo da terra, sem representações, personificando o mais difícil papel de todos os tempos, o de nós mesmos. Ser diferente é isso: apenas ser.


ATO APÓCRIFO

Palco girante é o tempo
Que assiste toda misancene
Dirige com fogo, sem alento
A inverdade deste insolente

Atuo voraz, uma vã semente
Plantada no esquife do amor
Sou máscara da morte (ente)
Efígie de anjo trabalhador

São tantos atos e o torpor
E tão anã é a tal vida
Que a quimera do que sou
É inconsciência renascida

Das ruínas, foi o que sobrou
Execrável, terna e linda


AS ASAS DO NORTE

E naquele mar luminoso
Iridescente, ela era uma ilha
Meu gosto nadando em seu gosto
Era real ou minha fantasia?
À deriva, sem estrelas, nem dia
Seus olhos orientes, meu sol
Seu perfil, curiosa magia
Eu era a pesca e ela, o anzol

Sua beleza, um excelso farol
Curvilíneas formas de se perder
Seus sóis castanhos, meu arrebol
Uma boca impossível de não querer
De suas palavras, eu bebia prazer
O fazer amor no ato de decifrar
Sua doçura embriagava meu ser
Uma canção nascia em seu simples falar

Dimensões insistiam em nos separar
Mas éramos guerra e relutância
Chamas heráldicas a queimar
Exalando amor em fragrância
E o que é a distância,
Se não o condutor de nossos tatos,
Minha pele em sua dominância,
Meu beijo no calor do seu lábio?

Estamos juntos, isso nos é raro
Mas há uma energia que quer fluir
No toque urente do seu doce pecado
Reinaremos o plano do simples fruir
Disso não podemos fugir
Ainda que a terra adormeça
Ainda que o sol amarelo adoeça
Te incorporar, é meu real porvir


ZUMBILÂNDIA

Não é à toa que nos contentamos facilmente com o que somos e nos acomodamos no quarto escuro e sem janelas da alienação. Não pensar - hoje - é um panegírico manifesto dos que querem se sentir acolhidos pela ébria massa, abraçados e reconhecidos por um sistema que nos desumaniza e nos dá uma falsa noção de liberdade e sucesso: o ter, em detrimento do ser; o ignorar, em detrimento do pensar. É fácil constatar que estamos caminhando para uma era do pensamento morto, basta fazer uma análise nas redes sociais, só para se ter uma ideia: a "desimportância" é pregada e espraiada pela maioria gritante dos usuários, entretenimento vazio, humor fácil e desinteresse generalizado. E não é raro você ver críticas destrutivas em relação aqueles que ainda arriscam pensar e expressar seus pensamentos: desdenham e os ridicularizam com argumentos estéreis e nomes pejorativos. Nunca se viu o termo pseudo-intelectualismo ser tão usado. Ser estúpido, hoje, é cool! Ser ignorante é ser descolado! Ser mal-educado é ter estilo! E ser alienado é um atestado de cidadania.

Pensar é uma doença que está sendo evitada a todo custo. Campanhas invisíveis de supressão ao pensamento são uma pungente realidade. O mais assombro é que queremos isso! E perseguimos aqueles "doentes" despadronizados que colocam em risco a estase social. Conceber o pensamento é como dar à luz uma besta apocalíptica. Quem aí achou que zumbis não existiam está parcialmente equivocado.


GRILHÃO DE OURO

Orgulho egoico (aquele que nos cerra, que nos faz donos e senhores de nós mesmos, em detrimento do outro) é para a guerra! Onde defender seus princípios e não se curvar aos interesses do inimigo é uma questão de honra. Virtuoso, apesar de impassível. No amor, porém, honroso é flexibilizar-se, tornar-se brando o suficiente para que o diálogo (de dialética) traduza bem a vontade dos dois em uma síntese bilateral. É a soma não-zero, como diria a teoria dos jogos. O orgulho (aquele sentimento de prazer em ter cumprido seu papel) virá automaticamente, em última instância, como resultado perene de um esforço que se comuta.


PARALYAL VISTA DE LONGE

Não me peça para dizer
Que o encanto partiu
Que o amor se feriu
Ou que não quero você
Sei que não pude entender
O que sua alma pediu
O que seu olhar insistiu
E que te perdi ao te ter

A desvirtude foi minha
Tentei conquistar
Uma forma de amar
Que há tempos já tinha
Ora, sou página sozinha
Lábios a não beijar
Braços sem abraçar
Um poema sem  qualquer rima

De você me desterro
Porque só resta fugir
Tão somente fingir
Que não sou eu que tanto erro
Mas noutra terra não me enterro
Meu lado bom vou surgir
Um novo eu construir
E tão logo me entrego

E se eterno for meu exílio
Orgulhoso estarei
Por esta terra sem rei
Permanecer em delírio
Não fingirei um alívio
Se retornar nunca ser
Mas estarei com você
Nas lembranças do início